A Cruz - parte 1
Introdução:
O presente opúsculo não pretende exaurir o assunto, tratando-se de pequeno comentário a respeito da profecia messiânica, e somente no tocante à crucificação e os demais eventos que se relacionam intrinsecamente, como a prisão, julgamento, condenação, flagelo, crucificação, morte e sepultura, excetuando a ressurreição e demais predições messiânicas, de caráter diverso à crucificação.
Trata-se, portanto de um pequeno estudo voltado às profecias bíblicas no Velho Testamento referente à crucificação e parte da Soteriologia, teologia sobre a salvação, envolvendo expiação e remissão.
A cruz, em todos os tempos em que existiu, é símbolo claro de instrumento de tortura e agonizante morte. Estar ali é ser identificado com indivíduo digno de morte lenta e cruel, onde febre, cãibras, sufocamento, copioso sangramento, perda de consciência, dores atrozes e por fim morte sôfrega por colapso cardíaco ou asfixia sobrevém ao supliciado.
Para Deus e sua Lei, é estar sobre suprema maldição. O maldito não poderia sequer permanecer ali toda a noite, sob perigo daquela terra ser amaldiçoada juntamente com ele. Para nós, porém, tornou-se símbolo da substitutiva morte de Cristo, onde nossos pecados foram expiados e nossas vidas resgatadas. Viver sob a sombra da cruz é estar ao alcance do perdão e de copiosas bênçãos, como a cura de nossas enfermidades, carregadas ali por Jesus.
Nas escrituras hebraicas não há tal vocábulo, senão a palavra xu, etz, "madeira", "árvore" (Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português, Sinodal/Vozes, 1994) usada cerca de 300 vezes no AT (Estudos do Vocábulo do AT, Mitchel, Larry. Ed. Vida Nova, SP, 1996). Em textos mais específicos o termo usado é xu-lu, al-etz (Velho Testamento Hebraico, The Foreign Biblie Society) que significa algo como "sobre-madeira", traduzida para "madeiro", outro artefato usado para penas cabais como a forca, ou um simples tronco de madeira, onde era elevado o réu. O Novo Testamento traz o vocábulo grego stauros, aparecendo 28 vezes (Estudos do Vocábulo do NT, Metzger, Bruce/Pinto, Carlos Osvaldo. Ed. Vida Nova, 1996) significando "pau", "patíbulo", "instrumento de suplício", e por extensão, "cruz".
1 – A crucificação no Antigo Testamento.
1º - A ferida no calcanhar.
"Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a sua descendência; este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar". (Gn. 3:15).
Certamente esta é a primeira referência à morte de Cristo e sugere a crucificação. Há três personagens envolvidos nesta interlocução: a serpente, a quem é dirigido à asseveração e com ela toda a sua descendência; a mulher e o descendente da mulher.
A serpente não somente aqui, mas em outros tantos lugares, é símbolo de maldição e traição, corporifica o mal e representa a Satanás. Ele é a "A antiga serpente, que se chama o Diabo e Satanás, que engana todo o mundo" (Ap. 12:9) Sua "descendência" seria todos quantos nascem e vivem naturalmente, sem sofrer alguma conversão. São os rebeldes contra Deus e seu Cristo (Sl. 2:1-3; Jo. 8:44; Rm. 3:12; 2 Tm. 3:4; Jd. 15,16).
Ele é o príncipe deste mundo (Jo. 12:31) e governa sobre aqueles a quem Jesus se dirige nestas palavras: "Vós tendes por pai o Diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai; ele é homicida desde o princípio, e nunca se firmou na verdade, porque nele não há verdade; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio; porque é mentiroso, e pai da mentira" (Jo. 8:44). Estes, que o seguem e obedecem, formam a descendência da serpente.
A "mulher" é primeiramente Eva, mas, por ela, o futuro povo Israel, a quem o Adversário perseguirá. A descendência da mulher seria toda a nação Israel, que viria dela: "Todavia eu mesmo te plantei como vide excelente, uma semente inteiramente fiel..." (Jr. 2:21). Por fim, o "descendente" da mulher é obviamente Jesus Cristo, judeu e descendente natural de Eva, por Adão (Lc. 3:38).
Vejamos, pois, pormenorizadamente aquela primeira profecia do plano salvívico, também considerada "proto-evangelho", ou primeiro evangelho, "boas notícias" de salvação.
Em seu julgamento primevo, no tribunal do Éden, Deus sentencia à serpente: "Porei inimizade entre ti e a mulher". Satanás seria um inimigo ferrenho e contumaz de Israel (representado por Eva), perseguindo-o até seu julgamento e execução, nos últimos dias (Ap. 12:1-7). Em extensão predisse: "Porei inimizade entre... a tua descendência e a sua descendência...". Se Deus continua a dirigir-se à serpente, segue-se que "tua descendência" seria obviamente a descendência de Satanás, a humanidade anticristã, ao passo que "sua descendência" é sintaticamente "a descendência dela", isto é, a descendência da mulher.
Um detalhe importante a se notar é que aquele que destruiria a serpente viria da semente da mulher, e não do homem. Doravante, todo ser humano que viesse ao mundo, seria por geração das sementes do homem e da mulher. Até mesmo poderíamos usar a sentença "da semente do homem" em meio ao ambiente patriarcal que permeava o mundo das escrituras.
Mas o termo "semente da mulher" exclui a participação masculina na geração deste indivíduo que viria. A descendência da mulher, Israel, surgiria pela participação de ambos componentes do primeiro casal. Mas o descendente, o prometido vitorioso sobre a serpente, viria apenas da "semente da mulher", ou seja, de maneira sobrenatural, miraculosa, sem a participação da "vontade da carne, nem do homem, mas de Deus" (Jo. 1:13).
Este ente que nasceria somente da mulher, pelo lado humano, seria santo e não participaria, desde seu nascimento, da transmissão do pecado, como todos os que nascem de maneira natural. Tempos à frente, sobre o nascimento deste mesmo ser é profetizado: "Eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome Emanuel" (Is. 7:14). A virgem conceberia sem participação masculina, senão de forma miraculosa e sobrenatural, a ponto de Isaías considerar este nascimento um sinal da parte do Senhor.
É por ter isto em mente que Paulo explica o nascimento do descendente da forma: "vindo à plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher" (Gl. 4:4). O Filho de Deus, o descendente, seria apenas "nascido de mulher" e não naturalmente do casal.
Traduzido por "descendência", o termo hebraico hurz, ‘zar’ah’, poderia ser traduzido também por "semente", "sêmen", "linhagem" ou "descendente". No tocante a descendência da mulher, a tradução "descendente" melhor se enquadraria nesta parte do versículo, pois o pronome usado ali seria 3.ª pessoa masculino singular, ou seja, "ele". Desta forma teríamos: "ele (o descendente) te ferirá a cabeça". Observemos tais ações: "esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn. 3:15). O verbo hebraico traduzido pelas ações "ferir a cabeça" e "ferir o calcanhar" é o mesmo, a saber, pwc ‘shuf ’, "ferir", embora possa ser traduzida por "esmagará a cabeça" e "abocanharás ou morderás o calcanhar" (Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, Sinodal/Vozes, 5.ª Ed., 1994).
Parafraseando esta passagem poderíamos obter: "Porei inimizade entre tu, Satanás, e a mulher Eva, e entre a tua descendência, a humanidade anticristã, e o descendente de Eva, Jesus; Ele te ferirá a cabeça, e tu, Satanás, ferirás o calcanhar dele" (Gn. 3:15). A versão parafrásica A Bíblia Viva diz: "você [serpente, Satanás] e a mulher serão inimigas, uma da outra. Também a sua descendência será inimiga do descendente da mulher. Ele ferirá você na cabeça, ao passo que você ferirá o calcanhar dele" (A Bíblia Viva, 9.ª Ed., Editora Mundo Cristão, SP, 1996., com inserção entre colchetes do Autor). Assim ocorre na tradução grega Septuaginta, que inicia a última frase com o pronome masculino, indicando que o esmagar da cabeça da serpente e a vitória definitiva sobre o mal, se daria pelo descendente da mulher, o esperado Messias.
O fato de o descendente ser ferido (abocanhado ou mordido) no calcanhar (heb. bqu, ‘aqebh’) traduz a idéia de golpe à traição, "pelas costas", ou, como traduz a mesma palavra ‘aqebh’, quando usada no plural, "retaguarda". Assim agem, por vezes, os ofídios. É exatamente esta característica apontada no pronunciamento de Jacó: "Dã será serpente junto ao caminho, uma víbora junto à vereda, que morde os calcanhares do cavalo, de modo que caia o seu cavaleiro para trás" (Gn. 49:17). Desta forma foi morto Jesus: traiçoeiramente, às escondidas, através do plano urdido pelos principais religiosos e o próprio apóstolo Judas, em quem entrou a tentadora serpente (Mt. 10:4; Lc. 22:3).
A ferida ao calcanhar em alguns momentos não é fatal, ao passo que o "esmagar a cabeça" é irremediável, definitivamente mortal. A ferida sofrida por Jesus levou-o à morte, de onde surgiu novamente à vida. A ferida não teve poder definitivo sobre Cristo. Por outro lado, a ferida que Jesus traria à serpente seria cabal e definitiva. Pisar ou esmagar a cabeça é destruir o poder e suprimir as fontes de vida. A serpente, ou Satanás, teria sua cabeça pisada pelo Descendente. Portanto seria por Ele julgado com pena definitiva e perene. As escrituras informam como isso se dará: "E o Deus de paz em breve esmagará a Satanás debaixo dos vossos pés" (Rm. 16:20). É a igreja, o corpo de Cristo, que esmagará a cabeça da traiçoeira e tentadora serpente. Jesus triunfará definitiva e eternamente.
Tão logo recebe esta sentença, Satanás aguarda surgir à semente da mulher, um descendente, para então lançar-se sobre ele, a fim de destruí-lo, antes que este o vença. Esta primeira tentativa se dá logo ao nascer dos primeiros descendentes de Eva, o que veremos mais à frente.
Continua...